terça-feira, 5 de maio de 2015

Vejo com os olhos fechados

"Como os atacadores que juntavam os dois lados dos meus ténis, a corrida estava a enredar-me, cada vez mais, com a minha cidade."

Correr não é para meninas, Alexandra Heminsley


A estrada férrea soma cerca de três quilómetros. Com o início na Cruz Quebrada, atinge o seu fim no princípio de Caxias. Os comboios passam em grande  ritmo e, ainda assim, se olhar no tempo certo vejo o seu início. Quando termina o gradeamento, do lado direito, vejo pedras pintadas. Rosa, vermelho, azul... Do outro lado, um espantalho improvisado. Uma árvore despida. Uns dizeres no chão. Na encosta camuflada pelo comboio estão alguns reentrâncias habitadas. Descobri as escadas até lá, do lado da estrada. O farol é lindo de tão próximo. Lá ao fundo, a água está mais próxima e dou a volta. Findo o caminho inverso, vejo agora a ponte ao fundo. Termina o cimento tosco e passa-se a estação- graffitada mas bonita. O abandono grita por ali. Segue-se um corredor de um empedrado irregular. Um montão de gatos anuncia-se pelas tigelas empilhadas no jardim esquecido. A ponte é de ferro e deixa-nos ver o rio por debaixo- ora discreto, vivo. Quando corremos ao lado do comboio em movimento, a sensação é... não sei. Quase como se fossemos forças combinadas. O meu filho tem medo e corre mais devagar. Dou-lhe a mão que aceita. Desço agora numa grande curva. O chão é liso e vermelho. Por esta altura é ladeado por papoilas e malmequeres. Às vezes tem pedras para nos lembrar do poder das marés. Nesses dias, olha-se para o chão, com cuidado. Conta-se um quilómetro e meio. Passo por barcos e cabanas de pescadores. Vejo a praia e cheiro. O caminho é lindo e espanto-me sempre por estar ali, para mim. A ponte está mais próxima e agora percorro mais um pedaço de cimento. Dunas mais altas impedem-me de ver o rio. Ainda assim, do outro lado da estrada, as luzes enchem as casas. As bonitas não têm cortinados. Vê-se uma casa de madeira, numa árvore. Tem uma escada de caracol e um pequeno varandim. Observo pequenos palacetes e vestígios de habitações de outros tempos. Os apartamentos de hoje mostram tectos altos e decoração a rigor. Corro a imaginar as gentes. Chego a uma decisão. Vou em frente pelo recanto obscuro ou faço mais quinhentos metros pelo restaurante com cheiro a abacate e lima. Das duas formas quero chegar àquele passeio. Por detrás (mais ao lado) do edifício moderno está a outrora doca. O silêncio e a luz... É como se só eu conhecesse o sítio por detrás da bela cascata. Volto para trás contornando o mini farol de riscas verdes e brancas. Os pássaros pequenos e gordos sobem e descem a rampa que ladeia o rio. Só os vejo ali. A esplanada está muda, os candeeiros apagados e o caminho continua. Mais perto da ponte, segue-se o passeio das pedras grandes e gastas. Passo por turistas que registam o lusco fusco por detrás do monumento em forma de torre. Inicia-se o alcatrão pintado. Frases e símbolos a amarelo ilustram a passada. Vejo agora espaços verdes a contrastar com o rio já prateado. Sigo o traçado e sei os quilómetros de cor. Mais sete até ao próximo marco. Volto a passar em chão com história, pisando agora azulejos pintados. Os descobrimentos são ladeados pelos nossos passos de hoje. Contorno a estação com marcas de gasolina e vejo atracado o barco conhecido. Volto a virar e vejo as pessoas sentadas. Ouço gargalhadas, sinto os copos e imagino o sabor dos caracóis. Volta o chão empedrado. Sigo pelas pedras lisas que demarcam a separação. Muito perto do rio, vou concentrada. Seguimos todos por ali. Cruzamo-nos e damos passagem. Às vezes sorrimos, às vezes movimentamos levemente a cabeça. Agradecemos. Por detrás do museu há uma luz avariada. Ora acende, ora apaga. Pouco depois, volta o piso que agrada. Um glutão amarelo no chão, faz-me sempre sorrir. Chego à ponte. Já está iluminada. Por debaixo, ouço os seus sons. Metálicos, rápidos. Às vezes continuo. Outras fico por ali. Sei os quilómetros de cor. Escolho o que fazer. Posso passar pelos bares e restaurantes, atravessar a estrada e seguir em direção à outra ponta. Chegada ao Cais do Sodré, sei que consigo o que quiser. Ou posso voltar para trás ali mesmo, por debaixo da ponte. A recta é boa e direita. Dá para correr com os olhos fechados e com os braços para baixo. Abrir as mãos e sentir o sangue a chegar a sítios já adormecidos. Quinhentos metros de liberdade. O vento normalmente corre agora contra dando a energia necessária para o regresso. Tudo parece mais fácil. Vê-se os Descobrimentos e a Torre iluminada. Cheira a bifes. Cheiro que dói. Corre-se mais rápido. A estação de Algés é sempre feia e suja mas é casa. Volta-se ao início. Fiz 7, 10 ou 15k. Fiz o que quis porque consigo tudo. 






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